Release do CD Samba Original

“Pedro Miranda é a prova de que o samba tem um grande passado pela frente. Todo dia ele nos surpreende com as grandes novidades de 1933, 1947, 1952 ou 1966, sem esquecer uma ou duas maravilhas de 1972 ou 1984. Seu repertório é tão abrangente quanto exigente – só inclui sambas passíveis de eternidade. Se um dia se inventar uma máquina que copie e transfira um arquivo musical de uma cabeça para outra, candidato-me a receber o que Pedrinho traz em sua cabeça. Enquanto isso não é possível, o jeito é me contentar com este CD. Por sinal, magnífico.”

–– Ruy Castro

 

O terceiro disco solo do cantor Pedro Miranda é, como o samba de Elton Medeiros e Zé Keti que o abre e batiza, um disco diferente. Pois de fato, minha gente, ele é muito original. 

Senão, ouçam logo a segunda faixa, “Batuca no chão”, original já por ser a única parceria de dois gigantes da música brasileira, Assis Valente e Ataulfo Alves. E por ser um tipo de samba que nenhum dos dois cultuava muito, o samba batucado, meio “macumbado”. Sem perder essa característica presente tanto nas gravações de Ataulfo, de 1944, como de Martinho da Vila, em 1986, Pedrinho traz uma versão, com perdão da insistência, totalmente original.  É samba, guiado pelos cavaquinhos de Alceu Maia e Luís Barcelos; é batucada nos atabaques de Paulino Dias e Thiago da Serrinha, mas já na introdução há a interferência das guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá, que seguem a gravação toda dando um toque salseado, meio rock latino à Santana (como se a macumba daqui encontrasse a macumba de lá, da América Central). O resultado desse ousado arranjo do diretor musical do disco, Luís Filipe de Lima, é pop, suingado, irresistível e... original. Sem perder jamais a ternura macumbeira imaginada por Ataulfo e Assis Valente.

“Samba original” é, ao contrário do último disco de Pedro Miranda, composto apenas de sambas “antigos”. Cria da noite da Lapa, pandeirista e partner de Teresa Cristina no pioneiro grupo Semente, e hoje membro de um dos melhores conjuntos da noite da Lapa e região, o Samba de Fato, Pedrinho surpreendeu a todos em “Pimenteira” (2009) ao lançar apenas sambas inéditos. Agora, como era de se esperar, dedica-se ao repertório do passado. Mas, mesmo assim, volta a surpreender: em vez de um repertório de clássicos, pequenas descobertas; em vez de arranjos tradicionais, ousadia formal.

Para não dizer que não há clássicos, tem um Ismael Silva e Noel Rosa, “A razão dá-se a quem tem”, originalmente um dueto criado por Francisco Alves e Mario Reis em 1933 e aqui recriado por Pedro Miranda e Caetano Veloso, ambos emulando, cada um a seu jeito, a intensa bossa da gravação original. A versão é respeitosa mas com pequenas ousadias: os contrapontos do bandolim de Luís Barcellos, a bateria de Oscar Bolão, o arranjo de sopros de Gilson Santos, prestem a atenção. Mas mesmo a composição, ainda que um “clássico” do samba, faz jus ao título do disco e é originalíssima na forma em que a segunda parte feita por Noel Rosa aproveita-se dos versos da primeira de Ismael Silva.  Ou seja, como Noel desenvolve a letra a partir dos versos sugeridos por Ismael no estribilho, transformando “A razão dá-se a quem tem” numa obra-prima de vanguarda. Original, pois. 

A originalidade está também na escolha do repertório. De um compositor baiano, Batatinha, Pedrinho redescobre um samba clássico de estilo “carioca”, “Imitação”, lançado por Maria Bethânia em 1971, aqui recriado de forma respeitosíssima, com direito a cordas. De um compositor carioca, Geraldo Babão, partideiro do Salgueiro, é pinçado um samba de roda de inegável sabor baiano, “Lola crioula”, e com um arranjo todo ousado, com direito a intervenções da guitarra de Pedro Sá lembrando as passagens de Lanny Gordin nos discos tropicalistas. Em conjunto, as duas faixas mostram por si como podem ser ricos e (ai meu Deus) originais os caminhos de um disco sobre sambas do passado. 

“Samba original”, o disco, é de fato como “Samba original”, o samba: finge que não vai falar dos assuntos habituais de um samba e fala de todos eles.

 Dessa união Rio-Bahia, tão prolífica para a história do samba, e aqui tão presente no dueto Pedrinho-Caetano ou na presença do Batatinha carioca ou do Geraldo Babão baiano, é que vem a mais recente música do repertório, de 2004: o samba de roda autêntico “Samba de Dois-dois”, da já histórica parceria do santamarense Roque Ferreira e do carioca Paulo César Pinheiro. E aqui num arranjo todo especial com direito à tradição do berimbau de Marcos Suzano e aos modernos contrapontos do violino de Nicolas Krassik. 

Da grande linhagem dos cantores de bossa e de gafieira, Pedro Miranda recupera um perfeito exemplar desse gênero, “Amanhã eu volto”, dos especialistas Roberto Martins e Antonio Almeida. É um samba tão perfeito que depois de criado pelo genial Vassourinha em 1942 já passou por mãos e vozes de Dilermando Pinheiro, Ary Cordovil, Roberto Silva e Gasolina, tudo cantor que, como Pedrinho, gosta de entortar, brincar com o ritmo. Notem nesta nova gravação o solo de sax tenor, tão de gafieira, de Eduardo Neves. E a clássica percussão de lápis no dente de Beto Cazes, criação do pai de todos os cantores de bossa, Luiz Barbosa. 

O repertório é de fato muito original. Seja na rara parceria de um pioneiro compositor do Estácio, Baiaco, com um fundador da Portela, o falecido Ventura,  o divertidíssimo “Se passar da hora”, que comprova a intercâmbio entre os diferentes redutos de samba do Rio naqueles anos 30.  Ou num raro samba do futuro Rei do Baião, Luiz Gonzaga, “Meu pandeiro”, lançado por Ciro Monteiro em 1947, curiosamente o mesmo ano de “Asa Branca”. Ou ainda num Wilson Batista raríssimo e originalíssimo, “Garota dos discos”, lançado pelo grupo vocal Quatro Ases e um Coringa em 1952 e que presta uma homenagem a um tipo esquecido mas fundamental do mundo musical do século XX, a vendedora de discos. 

Até o partido alto do disco é original, “Quero você”, pela melodia profunda de Wilson Moreira e a letra de Nei Lopes, num samba pouco difundido da dupla, lançado por Wilson em 1986. Outra parceriacontemporânea, Luiz Claudio Ramos, Franklin da Flauta e Aldir Blanc comparece com o choro-canção “Santo Amaro”, cuja harmonia complexa, a linda melodia e a letra épica são destrinchadas numa versão de voz e piano, a cargo de Carlos Fuchs, que valoriza a música lançada pelo Quarteto em Cy em 1978, no célebre disco “Querelas do Brasil”.   

“Samba original”, o disco, é de fato como “Samba original”, o samba: finge que não vai falar dos assuntos habituais de um samba e fala de todos eles; finge que vai ser original (já sendo) mas no fundo é só isso mesmo, um disco de samba, do melhor samba, com os melhores músicos e cantado por um dos melhores cantores de samba da atualidade. É pouco?

 

Hugo Sukman                                                                                                   
Junho de 2016

 

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“Samba original” é destaque no blog do crítico musical Mauro Ferreira

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Bastidores da gravação do disco “Samba original”